Então, cá estamos nós novamente. Depois de mais de uma década recebendo pacientes assustados com resultados de exame, laboratórios de análises clínicas ligando, preocupados com o resultado de uma CPK de 2000 U/L em algum paciente ou até mesmo colegas suspendendo medicações e nutricionistas querendo cortar Whey Protein (Felizmente, hoje são poucos) porque a TGP subiu um pouco, percebi que a raiz do problema é mais funda.
A confusão começa na base: ninguém ensina direito a diferença entre Atividade Física, Exercício e Esporte. E se o profissional de saúde não domina esses conceitos, como vai interpretar a fisiologia do seu corpo? É como tentar diagnosticar o problema em um motor de F1 com o manual de um carro de Marea Turbo. A base é parecida, mas a operação é completamente diferente.
Vamos desmontar isso de uma vez por todas. Pegue um café (com whey fica show, confia) e vem comigo, porque hoje vamos ficar menos burros. (Lembrem-se, podemos ser tudo na vida, menos burros).

A Tríade do Movimento Humano.
Não é só semântica. São categorias com implicações fisiológicas, metodológicas e clínicas completamente distintas.
1. Atividade Física: O Guarda-Chuva de Tudo
O Que É: Qualquer movimento corporal produzido pela musculatura esquelética que resulte em gasto energético acima dos níveis de repouso. Sim, é isso mesmo. Tudo.
Características Chave:
- Não-Estruturada: Espontânea, incidental, faz parte da vida diária.
- Intenção: O objetivo não é o movimento em si, mas sim realizar uma tarefa (chegar ao trabalho, limpar a casa, brincar com os filhos).
- Variável: A intensidade flutua muito, de muito leve a vigorosa.
Exemplos Práticos: Caminhar até o mercado, passar roupa, subir escadas no escritório, carregar as compras do carro.
O Impacto Fisiológico: Aqui é onde o NEAT (Termogênese de Atividade sem Exercício) reina. É o maior responsável pela variação do gasto calórico diário entre indivíduos. Do ponto de vista de saúde pública, é o mais importante. Reduz tempo sedentário, melhora sensibilidade à insulina, ajuda no controle da pressão arterial e perfis lipídicos. Mas sozinho, não gera adaptações significativas de força, hipertrofia ou VO2 máx. É a base da pirâmide, o alicerce não especializado da saúde.
MITO:
“fico em pé no trabalho, já é academia.” → melhora o volume diário, não substitui força e cardio dirigido.
2. Exercício: A Ferramenta de Precisão
O Que É: Aqui a coisa fica séria. Exercício é uma subcategoria da atividade física que é planejada, estruturada, repetitiva e realizada com um objetivo explícito: melhorar ou manter um ou mais componentes da aptidão física.
Características Chave:
Intencionalidade: O objetivo é o movimento. Você não sobe escadas para chegar ao andar de cima; você sobe e desce escadas repetidamente para melhorar seu condicionamento.
Estrutura: Segue o princípio de um modelo chamado FITT-VP:
- Frequência (quantas vezes/semana)
- Intensidade (%1RM, Zonas de FC, RPE)
- Tempo (duraçãoda sessão)
- Tipo (modalidade)
- Volume (carga total de trabalho)
- Progressão (aumento gradual da sobrecarga)
Prescrição: É dose-dependente e individualizada. Por isso, é importante o acompanhamento de um Profissional de Educação Física, é até possível utilizar uma IA para prescrever um treino, mas convenhamos… Ela vai avaliar sua execução? Seu estado de cansaço? Vai saber se você esta roubando uma REP ou mesmo progredindo carga igual deveria? Eu sempre repito, contratar um treinador(a) deve ser o primeiro e o principal investimento que você deve fazer ao desejar iniciar um programa de exercícios, seja o objetivo saúde ou estética.
Exemplos Práticos: Uma sessão de musculação periodizada, uma aula de spinning e etc.
O Impacto Fisiológico: O exercício é um estressor controlado que visa quebrar a homeostase para provocar uma adaptação específica (Hormese). É aqui que a mágica acontece:
- Cardiovascular: Aumento do volume de ejeção, redução da FC de repouso, angiogênese.
- Muscular: Hipertrofia (síntese proteica), recrutamento de unidades motoras, aumento das reservas de glicogênio.
- Ósseo: Aumento da densidade mineral óssea.
- Metabólico: Aumento da densidade mitocondrial, melhora da oxidação de lipídios, upregulation de transportadores de glicose (GLUT4).
É AQUI ONDE COMEÇAMOS NOSSO PAPO: É por causa dessas adaptações que os exames de uma pessoa que se exercita regularmente NÃO PODEM ser interpretados com os mesmos valores de referência de um sedentário. CPK, DHL, TGO (AST) serão naturalmente mais elevados. Cortisol e Testosterona flutuam de acordo com o volume e intensidade do ciclo de treino.
MITOS
- “fico em pé no trabalho, já é academia.” → melhora o volume diário, não substitui força e cardio dirigido.
- “meu jogo do sábado resolve.” → resolve o ego e a socialização; condicionamento precisa de estrutura.
- “só treino forte faz efeito.” → moderado conta muito; consistência vence heroísmo esporádico
3. Esporte: O Campo da Alta Performance

O Que É: O esporte é a aplicação do exercício e da atividade física em um ambiente competitivo, regido por regras explícitas, com o objetivo de vencer, superar um oponente ou atingir uma marca.
Características Chave (Onde o Bicho Pega):
- Competição: O elemento definidor. A performance é medida e comparada.
- Habilidade Técnica: Requer gestos motores específicos altamente aperfeiçoados (arremesso, chute, salto).
- Estratégia e Tática: Vai além da capacidade física pura.
- Periodização: O treinamento é dividido em macrociclos, mesociclos e microciclos (fases de preparação, competição e transição) para chegar no pico de performance na hora certa.
Exemplos Práticos: Jogar uma partida de futebol por um campeonato, competir em uma maratona oficial, participar de um torneio de jiu-jitsu, uma prova de levantamento de peso olímpico.
O Impacto Fisiológico e Clínico (O Limite Extremo):
Especificidade: As adaptações são extremamente direcionadas. Um corredor de 100m rasos e um maratonista são ambos atletas, mas têm fisiologias radicalmente opostas (sistema anaeróbio alático vs. aeróbio).
Risco de Lesão: Exponentialmente maior. Lesões agudas (traumáticas) e por overuse (estresse repetitivo) são comuns. O “jogar machucado” muitas vezes faz parte da cultura, exigindo do médico uma abordagem de manejo de risco e não apenas de eliminação de risco.
Psicologia: O fator mental é colossal. Overtraining syndrome, burnout, ansiedade pré-competitiva.
A Visão Total: O atleta não é um conjunto de sistemas isolados. É um organismo complexo onde sono, nutrição, hidratação, treino e recuperação estão totalmente interligados. Um exame alterado deve ser visto sob essa ótica multifatorial e por isso eu sempre falo: Atleta precisa ter acompanhamento multi-disciplinar, são mais pessoas avaliando aquele indivíduo por inúmeras perspectivas fazendo com que a chance de comer bola seja muito pequena, além de todos conseguirem executar suas funções e planejamentos com excelência (isso aqui é um sonho tá? a realidade é que no meio dessa idéia existe muito ego e soberba rs)
Por Que Essa Distinção Deveria Ser Matéria Obrigatória nas Faculdades da Área da Saúde?
Anamnese com precisão: Perguntar “você pratica atividade física?” chega a ser inútil, você acham mesmo que o Dona Neide de 77 anos, que criou 10 filhos tem 31 netos e cuida da casa até hoje sabe a diferença? Ou que o Senhor João de 50 anos, motorista de ônibus, diabético há 20 anos sabe a diferença que estamos discutindo? A pergunta deve ser: “O senhor se exercita? Oque você faz? Quantas vezes na semana? Por quanto tempo e há quanto tempo? Você chega a competir?“.
Interpretação de Exames Laboratoriais: Sim, Vou repetir:
CPK elevada depois do treino? Esperado. FISIOLÓGICO. Natural. Não, você não está em rabdomiólise só porque o número apareceu vermelho no laudo ou está fora do valor de referência do laboratório (aqui é um assunto pro futuro). Aliás, não é rabdomiólise se não tiver o combo: mal-estar, febre, náuseas, vômitos, dor desproporcional, urina escura, alteração renal, desidratação e afins. E também não é infarto só porque você teve uma crise de ansiedade depois de dar um Google no resultado. Porque vamos ser honestos: você abriu o exame, viu um número fora do valor de referência, não entendeu, foi pro Google, ficou ainda mais confuso, perguntou pra IA favorita, e aí sim começou a sentir uma dor nas costas, um leve formigamento no braço esquerdo e lembrou do tio-avô que infartou aos 70 anos.
A TGO (AST), que todo clínico associa automaticamente a infarto ou lesão hepática, está presente no músculo, com fração mitocondrial e citoplasmática. Já a TGP (ALT), exclusivamente citoplasmática, é a queridinha para julgar fígado, mas também está nos músculos. Ou seja, se você treina de verdade, e não só dá uma caminhadinha no shopping, elas vão subir. E tudo bem. Não tem hepatite ali. Tem esforço. Tem adaptação. Tem célula muscular respondendo ao treino. A elevação é leve a moderada, sem padrão colestático, sem sinais de disfunção. Mas claro, se o profissional não sabe o que está procurando, vai achar o que não é (Me corrijam se estiver errado, mas acho que citei Claude Bernard, e não vou procurar agora…).
A CPK, por sua vez, participa diretamente do ciclo energético do músculo. Ela pega creatina mais ATP e transforma em fosfocreatina, ADP e energia pra contração muscular. Tá com ela alta? ÓTIMO. Sinal de que o músculo está sendo usado. Só que tem gente que correlaciona isso com “estar com dor”. Não funciona assim. A dor é percepção. A CPK é marcador bioquímico. Tem gente que está com CPK nas alturas e não sente nada. Tem gente com dor pós-treino e a CPK nem mexeu. Relacionar isso diretamente é chute.
As três enzimas, TGO, TGP e CPK, estão nos músculos e, durante atividade intensa, podem cair na corrente sanguínea pela simples alteração da permeabilidade da membrana da célula muscular. Simples assim. Então, se você quiser mesmo avaliar lesão hepática, pare de olhar só TGO e TGP. Use GGT (alô cachaceiros, é aqui que a gente pega vocês no pulo), fosfatase alcalina, bilirrubinas, coagulograma. Se quiser avaliar a capacidade de síntese hepática, olhe proteínas totais, frações, albumina. E se tiver dúvida, 5-nucleotidase dá um help também. Essas sim têm especificidade. O resto é barulho.
Resumo: interpretar exames de quem treina como se fosse um sedentário é erro básico. E erro básico custa caro. Custa diagnóstico errado, interrupção de treino, corte de suplemento, desconfiança no treinador e descrédito do nutricionista. Não cometam esse erro.
Prescrição de Repouso: Mandar um atleta em período de competição parar totalmente por uma tendinopatia é, muitas vezes, irreal e contraproducente. A abordagem moderna é de repouso relativo e carregamento ideal, afastar do gesto que causa dor, mas manter a carga nos outros membros e o condicionamento. Isso exige que o médico, treinador e fisioterapeuta entenda a periodização e a importância da manutenção da forma física.
Prevenção de Lesões: O risco de lesão de um indivíduo sedentário que começa uma atividade física é diferente de um atleta de elite aumentando a carga de treino. As estratégias de prevenção devem ser direcionadas e obviamente individualizadas.
Conclusão: Trazendo para a prática
Vou resumir as recomendações sobre atividade física segundo a ACSM (American College of Sports Medicine):
Para Adultos (18 a 65 anos)
Atividade Aeróbica (Cardio):
- Duração:Pelo menos 150 minutos de intensidade moderada OU 75 minutos de intensidade vigorosa por semana.
- Como distribuir:A atividade pode ser dividida em sessões de pelo menos 10 minutos. Por exemplo, 30 minutos por dia, 5 dias por semana (moderada).
- Ideal para benefícios adicionais:Aumentar para 300 minutos de moderada ou 150 minutos de vigorosa por semana.
Treino de Força (Musculação):
- Frequência:Pelo menos 2 dias não consecutivos por semana.
- Como fazer:Incluir exercícios para os principais grupos musculares (pernas, quadris, costas, abdômen, peito, ombros e braços).
- Séries e Repetições:Realizar de 2 a 4 séries de 8 a 12 repetições para cada exercício.
Flexibilidade e Alongamento:
- Frequência:Pelo menos 2 a 3 dias por semana, idealmente todos os dias.
- Como fazer:Alongar todos os principais grupos de músculos e tendões. Manter cada alongamento por 10-30 segundos.
Para Idosos (65 anos ou mais)
As recomendações para idosos são semelhantes às dos adultos, mas com ênfase adicional no equilíbrio para prevenir quedas. A atividade deve ser adaptada ao nível de aptidão e condições crônicas de cada um.
- Atividade Aeróbica: As mesmas diretrizes dos adultos (150 min moderada/semana). Se não for possível, ser o mais ativo fisicamente que as condições permitirem.
- Treino de Força: Pelo menos 2 dias por semana. Pode envolver pesos livres, máquinas, bandas elásticas ou o próprio peso corporal.
- Exercícios de Equilíbrio: Pelo menos 3 dias por semana. Exemplos: caminhar para trás, ficar num pé só, tai chi chuan, caminhar em linha reta e etc.
- Flexibilidade: Pelo menos 2 a 3 dias por semana, alongando todos os grupos musculares principais.
Observação crucial: Idosos com condições crônicas ou mobilidade limitada devem fazer o máximo de atividade que suas habilidades permitirem e, preferencialmente, sob orientação de um profissional.
Para Crianças e Adolescentes (6 a 17 anos)
As recomendações para crianças e adolescentes enfatizam a variedade e a diversão.
Atividade Aeróbica:
- Duração:Pelo menos 60 minutos (1 hora) ou mais por dia.
- Intensidade:A maior parte desses 60 minutos deve ser de intensidade moderada a vigorosa.
- Tipo:Atividades de vigorosa intensidade devem ser incluídas pelo menos 3 dias por semana.
Treino de Força (Musculação):
- Frequência:Pelo menos 3 dias por semana.
- Como fazer:Como parte dos 60 minutos diários, incluir atividades que fortaleçam músculos e ossos. Isso pode ser através de esportes (ginástica, tenis, futebol e etc), brincadeiras (pular corda) ou exercícios com o peso corporal (flexões, abdominais). O treino com pesos deve ser supervisionado (SEMPRE).
Novamente, se sobrar uma grana, contrate um Prof. Ed. Física, sigamos as orientações acima, mas não seja burros.
Para você que é leigo: entenda que existe um espectro. Se seu objetivo é saúde, foque em aumentar sua atividade física diária (NEAT) e incluir sessões de exercício estruturado. Se quer competir, saiba que está entrando em um mundo de demandas específicas que exigem acompanhamento especializado.
Para você, colega profissional de saúde: não subestime o poder do exercício como intervenção. Ele é medicamento dose-dependente. Mas, acima de tudo, contexto é soberano. Um exame é apenas um número solto sem a história do paciente, da mesma forma que é uma foto do momento metabólico daquela pessoa. Pergunte sobre o treino. Entenda a modalidade. Colabore com os profissionais de educação física e médicos do esporte.
Não seja o profissional que condena o whey protein ou suspende alguma medicação porque a TGP subiu, nem que interrompe a periodização de um atleta por ignorar a fisiologia do treinamento. Como eu sempre digo: passe a bola. Deixe o especialista falar. A saúde e a performance agradecem.
Vai um resumão pra vocês nunca mais esquecerem:
- atividade física = todo movimento que gasta energia. pense: saúde básica.
- exercício = movimento planejado com progressão. pense: adaptação dirigida.
- esporte = regra, placar e habilidade sob pressão. pense: performance específica.
Abração e muita saúde (e bom senso) sempre!
Dr. Gilberto Nering Jr.
Médico do Esporte
CRM-SP 160822 | RQE 142486